Futuro em risco: quatro a cada 10 crianças brasileiras de até seis anos se afastam de creches, escolas e atividades sociais por falta de saneamento

  • Em números absolutos, 6,6 milhões de crianças até seis anos se afastam de suas atividades pela falta de saneamento básico. Número equivale a população do Paraguai;
  • Mais de 300 mil crianças são internadas em um ano por doenças relacionadas à falta de saneamento;
  • Sem água tratada ou banheiro, crianças de até 11 anos possuem dificuldades em identificar as horas num relógio ou calcular o troco;
  • Há atraso médio de 1,8 anos de escolaridade ao jovem de 19 anos que não tem acesso a saneamento;
  • 46,1% é a diferença de renda ao longo da vida de um jovem que teve acesso ao saneamento durante sua infância e adolescência

OUTUBRO DE 2024 – Como sociedade, almejamos um mundo repleto de crianças e jovens saudáveis. Porém, essa não é uma realidade possível sem saneamento básico. Buscando estudar os impactos do tema na gravidez, primeira infância, segunda infância e adolescência, o Instituto Trata Brasil, em parceria com a consultoria EX ANTE, produziu o estudo inédito “Futuro em risco: os impactos da falta de saneamento para grávidas, crianças e adolescentes”.

O estudo aponta o gritante impacto do tema em todas essas fases da vida, levando à riscos de saúde e a um desenvolvimento prejudicado, do ponto de vista físico e cognitivo, o que levará a notas mais baixas em todas as fases escolares e a um potencial de renda menor, que pode, considerando 35 anos de atuação profissional, chegar a uma diferença de mais de R$ 126 mil entre as pessoas que contaram e as que não contaram com saneamento básico. Chega-se a um diferencial de renda de 46,1% entre dois jovens, um com acesso ao saneamento durante sua infância e adolescência, tanto do presente como no passado, e outro que foi privado do saneamento básico ao longo de sua vida. Esta diferença pode representar, por exemplo, a capacidade de comprar ou não uma casa própria ao longo da vida adulta.

 

QUAIS SÃO AS DOENÇAS ASSOCIADAS À FALTA DE SANEAMENTO?

Para entender os impactos, precisamos primeiro discutir sobre como a falta de saneamento afeta a saúde. Em locais sem a infraestrutura, a população tende a ter maior incidência das chamadas doenças de veiculação hídricas, como a dengue, cólera, diarreia etc., ou seja, enfermidades causadas por água parada e/ou contaminada.

Outras modalidades de doenças que também são mais frequentes em locais sem saneamento básico são as doenças respiratórias, como gripe, COVID etc. e as doenças bucais. Sem água tratada, a higiene é prejudicada, o que leva ao aumento destas enfermidades.

 

A FALTA DE SANEAMENTO DURANTE A GRAVIDEZ

Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, havia 577,7 mil mulheres grávidas no momento da realização das entrevistas. Deste total, 71,4 mil mulheres se afastaram de suas atividades rotineiras em razão de algum tipo de problema de saúde, o que correspondeu a 12,4% da população grávida. Ao elevar a probabilidade de ocorrência de diarreias e de doenças respiratórias, a falta de saneamento eleva o risco de vida de mães e bebês na gestação, com sequelas para os primeiros anos de vida.

A maior parte dos afastamentos (70,3% do total ou 50,2 mil casos) foi causada por problemas ginecológicos e obstétricos. As doenças respiratórias foram a segunda principal causa de afastamento, com 4,5 mil casos ou 6,3% do total. Além disso, houve 1,6 mil casos de doenças de veiculação hídrica, o que representou 2,2% do total de afastamentos. Dessa forma, 8,5% (6.096) dos afastamentos foram causados por doenças que estão diretamente associadas à falta de saneamento básico.

 

IMPACTOS DE UMA GRAVIDEZ INSEGURA NOS PRIMEIROS ANOS DE VIDA

Os dados do Sistema de Informação de Atenção Básica, base de informações do Programa Saúde da Família do Ministério da Saúde, indicam uma importante relação dos impactos da falta de saneamento na saúde das crianças. Em 2005, quando a cobertura do saneamento era de 36,7% da população, a incidência de diarreias era de 5,5 casos em cada 100 crianças de até 2 anos de idade. A taxa de incidência de crianças desnutridas era de 3,8 casos em cada 100 crianças de até 2 anos de idade.

De 2005 a 2010 houve aumento da cobertura dos serviços e coleta de esgoto, que passou de 36,3% para 43,9% das famílias visitadas, ou seja, houve um incremento de cobertura de 7,6 pontos percentuais. Junto a esse movimento houve uma redução de 1,9 ponto na taxa de incidência de diarreias e de 2,5 pontos na taxa de incidência de desnutrição nas crianças com até dois anos de idade.

O mesmo processo ocorreu de 2010 a 2015: houve redução de 3,7 para 2,2 casos de diarreia a cada 100 crianças com até 2 anos de idade e queda de 1,3 para 0,7 casos de desnutrição a cada 100 crianças. Essas reduções foram consistentes com o aumento para 48,6% na taxa de cobertura dos serviços de coleta de esgoto em 2015, indicando que o avanço do saneamento, entre outros fatores, teve efeitos sobre a incidência de diarreias e desnutrição.

As mesmas relações analisadas do ponto de vista temporal para o Brasil podem ser estabelecidas centrando atenção nas diferenças regionais num dado período. O Sudeste foi a região que registrou os melhores índices de atenção por serviços básicos de saneamento: 89% das famílias atendidas por abastecimento de água e 80,6% das famílias com coleta de esgoto. A região foi a que apresentou as menores taxas de incidência de diarreia e de desnutrição em crianças com até dois anos: respectivamente 10,974 e 4,114 casos por mil crianças. A região Norte, por outro lado, foi a que apresentou os menores índices de cobertura por serviços de abastecimento de água e coleta de esgoto entre as famílias visitadas (50,3% e 7,5%, respectivamente) e as maiores taxas

de incidência – 45,431 casos de diarreia por mil crianças de até 2 anos de idade e 6,076 casos de desnutrição por mil crianças de até 2 anos de idade.

 

PRIMEIRA INFÂNCIA

A primeira infância, de acordo com o Ministério da Saúde, é o período que abrange os seis

primeiros anos de vida de uma criança. Fundamental para o seu pleno desenvolvimento, é nela que os impactos da falta de saneamento são mais severamente sentidos. De cordo com dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 (IBGE), nesta população houve 6,6 milhões de afastamentos por doenças de veiculação hídrica ao longo do ano de 2019 – frequência em creche, pré-escola e atividades sociais. Dada o total de 18,3 milhões de crianças no país, esse número equivaleu a 361,8 casos de afastamentos por doenças de veiculação hídrica a cada mil crianças naquele ano. Em outros termos, aproximadamente 4 a cada 10 crianças com idade até 6 anos se afastaram de suas atividades rotineiras em razão de diarreias e doenças transmitidas por insetos e animais.

Para o afastamento por doenças de veiculação hídrica contribuíram os hábitos sociais como a maior frequência em creches e pré-escola, que elevam a exposição das crianças a vírus que se propagam mais rapidamente com o contato social, como é o caso do Rotavírus, por exemplo.

No caso das doenças respiratórias, vê-se um crescimento da taxa de incidência conforme aumenta a faixa etária. Em 2019, houve 23,6 milhões de afastamentos por doenças respiratórias dessas crianças. Esse número superou a população de 18,3 milhões de crianças, indicando que em média cada criança ficou afastada mais de uma vez ao longo do ano em razão de gripes e pneumonias. A maior frequência em creches e pré-escola também eleva a exposição das crianças a gripes.

Quanto maior o acesso de uma população aos serviços de abastecimento de água tratada e de coleta de esgoto, menores são as chances de contrair doenças de veiculação hídrica ou doenças respiratórias. Vê-se que o aumento do acesso à coleta de esgoto se deu concomitantemente à redução das taxas de incidência de internações por esses dois tipos de doenças. De 2010 a 2022, o país viu sua taxa de cobertura se elevar em mais de 10 pontos percentuais, ao passo que a taxa de incidência de internações caiu 12,5 pontos, resultado de 8,6 pontos de queda nas internações por doenças de veiculação hídrica e 3,9 pontos de queda nas doenças respiratórias.

As taxas de incidência de doenças de veiculação hídrica e respiratórias na primeira infância nas unidades da Federação e nas grandes regiões do país em 2022 reforça essa ideia. As unidades da Federação com maiores taxas de cobertura de serviços de água e esgoto são aquelas que tiveram menores taxas de incidência de internações por esses dois tipos de doenças na primeira infância.

 

SEGUNDA INFÂNCIA

A segunda infância é o período que vai dos 7 aos 11 anos. As crianças que viveram a primeira infância com condições precárias de saneamento passam à segunda com sequelas em seu desenvolvimento físico e cognitivo. Essas sequelas, somadas a uma vida sem acesso adequado ao saneamento vão agravar essa situação, aumentando ainda mais as disparidades cognitivas e de saúde.

 

ADOLESCÊNCIA

A grande diferença em relação à infância é o fato de que os afastamentos das atividades rotineiras e as internações na adolescência têm repercussões mais acentuadas na formação escolar, que já começam a comprometer o potencial de desenvolvimento profissional para toda a vida.

De acordo com dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, na população de adolescentes, houve cerca de 5 milhões de afastamentos por doenças de veiculação hídrica ao longo do ano de 2019. Dada a população de 24,9 milhões de adolescentes no país, esse número equivaleu a 202,6 casos de afastamentos por doenças de veiculação hídrica a cada mil crianças naquele ano. Em outros termos, aproximadamente 2 a cada dez adolescentes com idade entre 12 e 19 anos se afastaram de suas atividades rotineiras em razão de diarreias e doenças transmitidas por insetos e animais.

 

 

Fonte: Instituto Trata Brasil e Ex Ante Consultoria Econômica

Integra do estudo: https://tratabrasil.org.br/wp-content/uploads/2024/10/Futuro-em-risco-v.2024-10-08.pdf

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